Pontos, interrogações e reticências em relação ao uso de vírgulas
A vírgula de Oxford é um exemplo de como uma vírgula pode fazer toda a diferença
Quando era pequenino e, na escola, aprendi a ler e a escrever, ensinaram-me que, numa lista, se separam todos os elementos por vírgulas excepto o último, que é antecedido da conjunção “e”. Só mais tarde, depois de ter aprendido inglês, me apercebi da existência da vírgula de Oxford
(também designada de vírgula de série ou, no original, “serial comma”)
: é usada, numa lista, antes da conjunção “e”, separando o penúltimo e o último elementos, com o objectivo de evitar ambiguidades
(embora alguns anglófonos a usem por defeito, sem que exista necessariamente uma ambiguidade que necessite de ser eliminada)
. Veja-se o exemplo que é apresentado nesta página do Ciberdúvidas: a frase «as equipas apresentaram-se de verde e amarelo, vermelho e azul e branco» é ambígua, não sabemos se uma equipa vai de vermelho e azul e a outra de branco ou se uma equipa vai de vermelho e outra de azul e branco. A ambiguidade pode ser desfeita recorrendo à tal vírgula de Oxford: no primeiro caso ficaria «as equipas apresentaram-se de verde e amarelo, vermelho, e azul e branco» e, no segundo, «as equipas apresentaram-se de verde e amarelo, vermelho e azul, e branco». O aforismo e lugar-comum de que, por vezes, uma vírgula faz toda a diferença, não existe por acaso.
Cheguei tarde à série Modern Family. Lembro-me de, ocasionalmente, passar por ela, ao longo dos anos, num zapping impaciente
(que costuma ser a característica básica de qualquer zapping)
que nunca me deu o tempo suficiente para que pudesse verdadeiramente apreciar e aperceber-me do que estava a perder. Até ao ano passado, altura em que, cá em casa, começámos a ver os episódios de enfiada; estamos agora a chegar à quinta temporada e, pelo caminho, já dei várias gargalhadas descontroladas. No episódio “Me? Jealous?”, o 14º da 3ª temporada, Phil Dunphy convida um cliente prospectivo, chamado Tad e interpretado por Greg Kinnear, para jantar em casa. Phil está doido por causar uma boa impressão: Phil é agente imobiliário e Tad tem muito dinheiro e várias boas casas para vender, com comissões chorudas associadas. Depois do jantar, ao despedir-se, Tad surpreende Claire, a mulher de Phil, e beija-a, com a maior naturalidade, na boca. Claire fica incomodada com o sucedido; já Phil nem sequer se apercebe, focado no suposto abraço que ele e Tad deram e que, segundo Phil, significa que seguramente Tad vai escolhê-lo para fazer a intermediação imobiliária. Claire fica ainda mais incomodada quando, após ter chamado a atenção a Phil para o cumprimento pouco ortodoxo
(How does that not bother you?)
, este desvaloriza: se calhar é assim que Tad se despede, é um tipo viajado e com costumes progressistas. Claire não se conforma e resolve provocar Phil. Num jantar em casa de Tad, Claire ri efusivamente, de forma claramente exagerada e histriónica, de uma história que Tad conta que, na melhor das hipóteses, é medianamente engraçada. Sentado ao seu lado, Phil esboça um olhar desolado, derrotado: o ciúme de Phil pode não responder ao beijo na boca da sua mulher, mas dispara com o riso dela. O que se segue é um aparte em que Phil fala directamente para os espectadores e nos diz o que lhe vai na alma e no coração. Trata-se de uma frase que é reformulada por duas vezes. A frase inicial é
You can kiss my wife, you can take her to bed, but you cannot make her laugh.
e tem um problema gritantemente óbvio que Phil rapidamente rectifica, com toda a lógica, para
You can kiss my wife but only I can take her to bed and make her laugh
. Acontece que também esta segunda frase tem um problema, ainda que mais subtil. Phil pára novamente para pensar e acaba por optar por esta última formulação
Only I can take my wife to bed, comma, and make her laugh
. Esta comma, que a personagem diz para frisar a importância da colocação de uma vírgula naquele preciso local, é, nada mais nada menos, do que uma vírgula de Oxford. Vem numa missão de salvamento de Phil, evitando que aquilo que nos diz possa ser interpretado como sendo ele o único autorizado a levar a sua mulher para cama e, simultaneamente, fazê-la rir, o que tem o inconveniente de admitir a possibilidade de que outro(a)s a possam levar para a cama desde que não a façam rir. Para além de ser um óptimo exemplo da importância da utilização de pontuação, este curto trecho é também um atestado, um hino à qualidade de escrita da série.
As opiniões dividem-se entre usar ou não a vírgula de Oxford. Há quem ache perfeitamente normal e admissível, há quem ache que se trata de uma questão de estilo e que deve ficar ao critério de quem escreve. Há quem ache que se pode usar chapa quatro, há quem ache que se deve usar apenas quando é verdadeiramente necessário para clarificar a escrita. Mas há quem ache pura e simplesmente errado e há, inclusivamente, falantes nativos de inglês que, tal como eu, tiveram professores de primária que lhes disseram que não se deve usar. No campo dos opositores mais radicais estão os Vampire Weekend, que iniciam esta música, apropriadamente intitulada de “Oxford Comma”, com
Who gives a fuck about an Oxford comma?
, verso bastante colorido e sem quaisquer papas na língua, que é repetido ao longo da música. Sem querer enveredar pelo terreno escorregadio de tomar partido num tema fracturante como este, ainda assim, confesso que, depois de ter visto este trecho do Modern Family, ganhei um certo respeito por esta vírgula com nome de cidade universitária. E imagino até a malta de Cambridge cheia de ciúmes, com uma dor de cotovelo gigante por não terem o seu sinal de pontuação próprio.
Ai que maravilha de leitura, daqui uma pessoa que também consegue perder-se a estudar vírgulas. Como adepta da linguagem clara, acho que a oxford comma pertence sempre onde é essencial para clarificar.
Modern Family é brilhante, deixou saudades. Ando à espera que os miúdos fiquem um pouco maiores para fazermos maratona. Vou adorar revisitar.
Sugestão: nas vírgulas, a seguir manda-te à do vocativo (obrigatória, mas a cair com a falta de uso) e à inegável diferença entre escrever "Já fiz, amor" e "Já fiz amor". ;)
Sempre interessante e sempre bem escrito.