A língua de madeira
A arte de criar palavras e expressões que tornam a comunicação (ainda) mais difícil.
Acreditem ou não, sou acusado de não ser uma pessoa de superlativos
(e essa é uma acusação que me tolda tanto como se me tivessem acusado de não ser uma pessoa de graus comparativos, tal como este que acabei de escrever)
. Quem faz essas acusações acrescenta que não sou dado a hipérboles, o que, em si, me parece uma constatação hiperbólica. Isto porque não me conseguem arrancar um livro preferido, um filme preferido, uma música preferida, um prato preferido, uma posição do Kama Sutra preferida. Recuso-me terminantemente a responder a perguntas deste cariz. Por um lado, porque me parece uma tarefa muito difícil, hercúlea: há tantos livros, filmes, músicas de que gosto; como raio vou conseguir identificar um supra-sumo de uma dada categoria e elevá-lo ao Olimpo dos livros, dos filmes, das músicas? E isto sem referir que a minha vertente de people pleaser ficaria condoída por aqueles relegados da posição cimeira. Para complicar as coisas, há inúmeras subcategorias dentro de cada categoria. Ora atente-se ao caso dos filmes: há dramas, comédias, musicais, filmes de terror, filmes históricos, biografias, filmes sobre guerras, etc. Seria, no mínimo, misturar alhos com bugalhos
para não dizer altamente paradoxal
escolher um primus inter pares que abarcasse tanta coisa diferente. Infelizmente, quando suplico àqueles que tentam extrair qualquer tipo de superlatividade que, pelo menos, me deixem organizá-la subcategoria a subcategoria, retorquem-me que isso não é possível, que esbarra frontalmente com a pergunta inicial. A superlatividade, segundo consegui apurar, só pode existir na forma absoluta, não admite aplicar-se apenas a (sub-)conjuntos.
Só há uma ocasião em que cedo à pressão e avanço nomes: quando há, para a categoria em causa, um critério objectivo e claro de medição: é sempre possível aferir qual o livro que vendeu mais, o filme com a melhor box office, etc. No desporto, então, é tiro e queda: o futebolista com mais golos, o tenista com mais títulos, etc. É uma forma algo airosa de dar a volta à questão, de tornear o problema porque, na prática, não responde verdadeiramente à pergunta original, que se centra numa apreciação pessoal subjectiva. Sim, são estes os subterfúgios a que recorro para evitar responder a perguntas deste género.
Mas como não há regra sem excepção
(os peritos asseveram inclusivamente que a segunda confirma a primeira)
, (muito) de vez em quando perco a cabeça e sou surpreendido por ser capaz de identificar uma preferência. Querem ver? Aqui vai. Senhoras e senhores, meninas e meninos
(ouvem o rufo?)
, gostaria de vos comunicar que estou em crer que o meu humorista preferido é
(ouvem o rufo a aumentar?)
o George Carlin. Há qualquer coisa nele, para além de ter imensa graça, que o torna distinto dos demais. Talvez seja a capacidade de observação e crítica
(e este comentário vem de quem considera que a crítica social não é uma característica que torna necessariamente o trabalho do humorista melhor; às vezes, até os que se focam estritamente em humor de casa-de-banho têm, pura e simplesmente, mais graça)
; talvez seja uma certa rudeza, a postura de “deixem-se de merdas” e o estou-me cagandismo; talvez seja somente a figura estranha e desengonçada, a magreza e o rabo de cavalo à guitarrista de banda de rock. Não sei. O que eu sei é que, contrariando a ideia de que o humor e a piada só podem ser executados uma vez e não são para ser repetidos
(o Raúl Solnado dizia que o trabalho do humorista era ingrato porque as piadas só podem ser contadas uma vez, ninguém quer ouvir a mesma piada duas vezes, quando já sabe como acaba. O contrário acontece na música: repetimos ad nauseam uma música de que gostamos. Aliás, bastas vezes são os próprios músicos que já estão fartos das suas próprias músicas e que, ainda assim, têm de as tocar para um público sequioso.)
, há coisas do Carlin que ouço vezes sem conta e continuo muito longe, a milhas de distância, de atingir a saturação - duvido muito seriamente que possa alguma vez lá chegar. Um dos segmentos que consigo ver repetidas vezes sem me fartar um bocadinho que seja faz parte do special “Doin’ it again”, de 1990. Nele, Carlin desenvolve uma análise
profunda e aturada como é, aliás, seu apanágio
do que designa “linguagem macia”
(à falta de melhor tradução para “soft language”, aqui vai a literal)
. Trata-se de uma impressionante colectânea de elaboradas expressões eufemísticas,
que eu argumentaria, com algum garbo, que têm também um toque, um cheirinho de perifrástico
e que são usadas em detrimento de outras palavras e expressões mais simples e lineares para designar a mesma coisa. O objectivo? Carlin, com o seu habitual negativismo e total descrença na Humanidade, afirma que servem para mascarar o verdadeiro significado das coisas, por forma a nos anestesiar e ajudar a lidar melhor
(que é como quem diz, a evitar ou a não lidar)
com a realidade. Como se não fosse já suficiente, a sua elaboração e opacidade têm vindo a evoluir ao longo do tempo, acentuando-se ao ponto de, em alguns casos e em linha com o negativismo e total descrença na Humanidade de Carlin, a decifração do seu significado original se ter tornado praticamente impossível. Sem querer incorrer num spoiler fatídico
(não digam que não avisei!!)
, deixem-me dar-vos conta do primeiro exemplo que ele dá neste trecho: na Primeira Guerra Mundial, a expressão shell shock era utilizada para designar o trauma psicológico relacionado com o combate; na Segunda Guerra Mundial, a mesma condição passou a ser battle fatigue; uns anos depois, por altura da guerra da Coreia, já era operacional exhaustion; chegados à guerra do Vietname, surgiu o termo post-traumatic stress disorder que, vejam só, até tem um hífen e tudo. Ou seja, de conflito em conflito, com o passar do tempo, a designação tornou-se mais longa e palavrosa, mais opaca e menos evidente, como se deliberadamente quiséssemos distanciar as palavras do seu verdadeiro significado. A única coisa que ficou exactamente igual, apesar das múltiplas alterações de designação, foi a condição que aflige os combatentes: essa não mudou um centímetro que seja. E essa é, aliás, uma das características basilares das coisas: não se deixam impressionar, são totalmente imunes à forma como as chamamos, como nos referimos a elas.
A langue de bois
(recorrendo a mais outra tradução literal, trata-se de “língua de madeira”)
é uma expressão que se refere a um tipo de discurso ambíguo, vazio, abstracto. Em si, a expressão langue de bois é um oxímoro
(depois de hipérbole, eufemismo e perífrase, aqui está a quarta figura de estilo deste texto)
, que contrapõe a agilidade da língua com a rigidez da madeira. É um trocadilho com a expressão jambe de bois
(neste caso, a melhor tradução será talvez “perna de pau”)
, como se a língua de madeira substituísse um membro inexistente, tal como a perna de pau faz as vezes de uma perna (orgânica). Atribuída inicialmente a Georges Clemenceau, Presidente do Conselho francês no final da Primeira Guerra Mundial, a expressão langue de bois viria a ganhar repercussão nos meios de comunicação franceses, em particular a partir dos anos 80, para caracterizar o discurso oficial dos dirigentes da União Soviética. Hoje em dia, tem uma utilização generalizada, muitas vezes associada ao âmbito da política. Um dos elementos que a caracteriza
para além de retirar conclusões particulares a partir de casos gerais, de evitar o concreto e a constatação de factos, do recurso a construções na terceira pessoa ou impessoais, assim como tautologias e metáforas duvidosas
é precisamente o recurso a um jargão palavroso, pouco claro, opaco, aquele jargão a que George Carlin se refere no trecho de que há pouco vos falei. Ao contrário de Carlin, a langue de bois está viva e de boa saúde. Eis um exemplo relativamente recente, com uma década e picos de idade:
Carlin já tinha, infelizmente, morrido aquando desta entrevista, mas teria sido giro vê-lo a degustar este fabuloso recurso a expressões como “inconseguimentos” e “não-conseguimentos”
(assumo que leva hífen, mas pode ser um inconseguimento meu)
para designar qualquer coisa como falhas, falhanços, derrotas, fracassos, tanta palavra disponível
(as declarações foram, como não podia deixar de ser, escalpelizadas na altura; vejam um exemplo aqui)
. De resto, faz-me lembrar a maravilhosa expressão “inverdade”, termo que pelo menos este dicionário já inclui e que, vai na volta, se calhar também pode ser usada como “não-verdade”
(com hífen?)
A comunicação já é um animal complicado e, segundo Niklas Luhmann, um acto improvável: entre aquilo que queremos dizer e aquilo que o receptor capta e percebe pode existir uma grande diferença. Que aumentemos a probabilidade de um potencial inconseguimento comunicacional parece um tiro nos pés. A não ser que o objectivo seja precisamente impedir a boa comunicação. É caso para dizer que parece inverdade mas é mesmo verdade.